Análise dogmática do artigo 22 e parágrafo único da Lei nº 7.492/86 com vistas a verificar a ilicitude ou não em negociar, manter ou portar dólares (ou qualquer moeda estrangeira) no território brasileiro

A Lei n.º 7.492/86, em seu artigo 22, criminaliza, no caput, a conduta de realizar operação de câmbio objetivando a evasão de divisas, e no parágrafo único, a promoção desautorizada da saída de moedas e divisas para o exterior e manutenção não autorizada de depósitos no exterior, punindo tais comportamentos com a pena de reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. A questão que se propõe é, mediante análise da construção do tipo, verificar se há ilicitude ou não em negociar, manter ou portar moeda estrangeira no território brasileiro.

O referido artigo visa a tutelar a estabilidade e a credibilidade do Sistema Financeiro Nacional, com ênfase ao mercado de câmbio e à arrecadação tributária, potencialmente prejudicados com a evasão de moedas e divisas e com depósitos não declarados no exterior.

No tocante à autoria, por tratar-se de crime comum, pode ser praticado por qualquer pessoa, independentemente de qualificação especial, inclusive por estrangeiro.(1) O sujeito ivo é o Estado.

São típicas as seguintes condutas: a) efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do País, b) promover, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior e c) manter depósitos não declarados à repartição federal competente.

Diante de tais previsões verifica-se que a regular transação cambial (realizada por intermédio de uma instituição autorizada a operar em câmbio pelo Banco Central, por meio de contrato de câmbio e registrada no Sistema de Informações do Banco Central -SISBACEN), efetivada sem a finalidade específica de promover a evasão de divisas, não é típica.(2) Da mesma forma, de acordo com o art. 65 da Lei n.º 9.069, de 29 de junho de 1995, o ingresso no país e a saída do país, de moeda nacional e estrangeira serão processados exclusivamente através de transferência bancária, exceto quando, em moeda nacional, até R$ 10.000,00 (dez mil reais) e em moeda estrangeira, o equivalente a R$ 10.000,00 (dez mil reais). Acima desse valor, a saída ou remessa de valores ao exterior, sem autorização legal, é uma a conduta típica. Desse modo, como o tipo penal dispõe apenas sobre a conduta de promover a saída, o ingresso no território nacional com moeda estrangeira não configura o delito(3), como também não é crime impedir que divisas entrem no território nacional, tampouco o simples porte ou circulação interna de moeda estrangeira dentro de nossas fronteiras.(4)

Do mesmo modo, o simples fato de manter conta bancária e depósito em instituição financeira sediada no exterior não é crime, e a infração penal somente ocorrerá se o sujeito se omitir em informar ao Banco Central do Brasil e ou à Receita Federal a existência dos depósitos em conta bancária no exterior.(5)

Por tratar-se de lei penal em branco, o significado das expressões típicas sem autorização legal e não autorizadas é estabelecido por outra legislação, no caso o Regulamento do Mercado de Câmbio e Capitais Internacionais -RMCCI, instituído pela Circular nº 3.280, de 09 de março de 2005 do Bacen. A declaração de depósitos em repartição federal competente é uma exigência da Medida Provisória n.º 2.224, de 04/09/2001, combinada com o Decreto-lei n.º 1060, de 21/10/1969 e regulamentada pelas resoluções do Conselho Monetário Nacional de números 2.337, de 28/11/1996, e 2.911, de 28/11/2001, e Circular do Bacen n.º 3.278/2005.

A parte subjetiva do delito sob comento é constituída pelo dolo consistente na consciência e vontade de realizar operação de câmbio não autorizada, e no parágrafo único, de promover a saída não autorizada de moeda ou divisas para o exterior ou de manter depósitos no exterior, sem a devida comunicação às autoridades federais competentes. É imprescindível, no caso do caput, a presença do especial fim de agir caracterizado pela finalidade de promover a evasão de divisas. Logo, não haverá crime se a compra de moeda estrangeira for efetuada para fazer poupança, pois não há a intenção particularizada de remessa indevida de dinheiro para o exterior. Da mesma forma, não caracteriza crime o simples porte de moeda estrangeira, sem prova de que tenha origem em operação de câmbio não autorizada e de que o agente tenha a intenção de promover evasão de divisas.

Sobre o momento consumativo, nota-se que, no tocante ao caput do artigo em apreço, trata-se de crime de mera conduta, que se consuma no momento e no lugar em que o sujeito ativo, com o propósito de evasão de divisas, realize operação cambial não autorizada (sem o conhecimento das autoridades fiscais e monetárias). É desnecessário que as divisas saiam do país, e ocorrendo a saída, o crime se exaurirá. Todavia, a simples operação de câmbio desautorizada, divorciada do fim de evasão, não basta à caracterização do crime. A tentativa é possível, e ocorre quando a concretização da operação de câmbio não ocorra por circunstâncias alheias à vontade do agente.

No caso do parágrafo único primeira parte "… promover a saída de moeda ou divisa para o exterior" – trata-se de crime material que se consuma no lugar e no instante em que a moeda e/ou divisa saia do território nacional em direção ao exterior (desnecessário que as divisas ingressem em território estrangeiro basta a saída do país). A tentativa é perfeitamente issível, por exemplo, quando o agente é preso na Ponte Internacional da Amizade, dentro do território nacional, levando consigo quantia acima de dez mil dólares para o Paraguai. Por sua vez a segunda parte do parágrafo único " … mantiver (no exterior) depósitos não declarados à repartição federal competente" tem-se um crime permanente, que se caracteriza por uma conduta inicialmente comissiva, realizada com o depósito lícito de recurso em uma conta bancária no exterior,(6) e por um comportamento omissivo, consistente na não-comunicação da existência do depósito às autoridades fiscais e monetárias brasileiras. Diante dessa estrutura, em parte omissiva, não é issível a tentativa.

Concluindo: ressalvada a hipótese de crime tributário, por ausência de declaração dos valores perante o fisco, nos termos do artigo 22 caput e parágrafo único, não é crime a simples operação de câmbio, ainda que irregular, se desacompanhada da finalidade de evasão. Mesmo porque o Regulamento do Mercado de Câmbio e Capitais Internacionais – RMCCI permite que as pessoas físicas e as pessoas jurídicas comprem ou vendam moeda estrangeira, sem limitação de valor, independentemente da finalidade de sua utilização – por exemplo, objetivando a formação de poupança -, desde de que o façam via instituições financeiras autorizadas. Ressalte-se que é crime, previsto no artigo 16 da lei em análise, fazer operar instituição financeira (atuar no mercado de câmbio) sem autorização legal. Por fim, não é crime manter ou portar dólares (ou qualquer moeda estrangeira) no território brasileiro; todavia, de acordo com o artigo 65, § 2.º, da Lei n.º 9.069/95 c/c artigo 5.º da Resolução n.º 2524/98 do BACEN, a moeda estrangeira, em espécie, mantida ou portada, for de valor superior ao equivalente a R$ 10.000,00 (dez mil reais), deve ser apreendida e encaminhada ao Banco Central do Brasil para a adoção das providências cabíveis, quando não for comprovada a sua aquisição em banco autorizado ou instituição credenciada a operar em câmbio no país ou não tenha sido o valor devidamente declarado à Secretaria da Receita Federal, na forma da referida Resolução.

Notas

(1) STJ, RHC 17.001/RJ, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 08.03.2005, DJ 28.03.2005 p. 291).

(2) "Em se tratando de comércio clandestino de dólares e travelers cheques entre particulares, não há falar em crime contra o sistema financeiro nacional, eis que ausente qualquer prejuízo a bens, serviços ou interesses da união" (STJ, Cc 18.973/Mg, Rel. Ministro Fernando Gonçalves, Terceira Seção, Julgado Em 12.11.1997, DJ09.12.1997 P. 64593).

(3) STJ, REsp 189.144/PR, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, SEGUNDA TURMA, julgado em 17.02.2005, DJ 21.03.2005, p. 302.

4) "A consumação de crime de operação irregular de câmbio pressupõe prova efetiva da prática proibida, sendo insuficiente para a condenação, a simples apreensão de U$ 260,00 (duzentos e sessenta dólares) no estabelecimento comercial da acusada" (TRF 4.ª Região, ACR – APELAÇÃO CRIMINAL 9604525042 /RS, Rel. VLADIMIR FREITAS, PRIMEIRA TURMA, DJ de 08/10/1997, p. 83272).

(5) TRF 3.ª Região, ACR -APELAÇÃO CRIMINAL 1999.03.99.007463-2/SP Rel. JUIZA SYLVIA STEINER, SEGUNDA TURMA, DJ de 22/04/2002, p. 360.

(6) "Não constitui crime a conduta de quem, adquirindo dólares (US$ 4.000,00) regularmente, em função de viagem internacional de turismo, abre conta bancária no exterior com parte das divisas adquiridas (US$1,000.00), para custeio de despesas episódicas (gastos com filho em intercâmbio), ainda que não declare o depósito de imediato à receita federal, senão posteriormente. Para a configuração do crime de evasão de divisas não é necessário que os valores saiam do país, mas deve existir operação cambial não autorizada com o intuito de evadir" (TRF 1.ª Região, HC 2004.01.00.051603-0/BA, Rel. Desembargador Federal Olindo Menezes, Terceira Turma, DJ de 08/04/2005, p.36).   

Paulo Cezar da Silva é delegado de Polícia; mestre em Direito Penal pela Universidade Estadual de Maringá; professor de Direito e Processo Penal no Curso de Graduação da Universidade Paranaense de Paranavaí e das Faculdades Nobel de Maringá e coordenador do Curso de Especialização em Direito e Processo Penal da Unipar de Paranavaí.

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